sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Sete tópicos sobre o segundo governo Dilma (ou O Destino do Oroboro)

A serpente oroboro, símbolo da alquimia:
um governo que se consome aos poucos
1. Dilma chegará a dezembro tendo feito, nesse segundo mandato, um primeiro ano de governo pífio. Quisera eu classificar apenas como medíocre, mas seria desonesto dizer que não foi, no mínimo, muito ruim.
2. Não bastasse a articulação política mambembe (ou por conta dela), seu governo perdeu o peso institucional e, pior, a clareza de agenda. Qual um oroboro precário, só consegue correr atrás do próprio rabo e vai se consumindo aos poucos. Além disso, segue esfarrapando o tecido social que (ainda) lhe resta e insiste em escolhas equivocadas - sobretudo em relação à plataforma de campanha do ano passado. A principal delas, que poderá levar todo o restante de seu mandato para o ralo, a manutenção de Joaquim Levy - um neoliberal cínico, soldadinho do mercado financeiro -, no Ministério da Fazenda.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Memória


Liberto do tacão do dogma,
da guerra e do dízimo,
Deus pode revelar sua
verdadeira face:
a liberdade em todo seu
esplendor e glória.

Deixa então de nos assombrar,
de carecer de sentido.
Embriaga-se, sai à rua.
Vira amigo de mesa de bar,
anjo caído.
Dispensa a fé e seu rapapé.

domingo, 27 de setembro de 2015

Underground: o cinema como avesso do avesso

Underground: a realidade fadada ao fracasso como narrativa racional
Underground, lançado por Emir Kusturica há exatos vinte anos, é, com o perdão da cacofonia, uma meta-alegoria. Se quiséssemos destrinchá-lo em camadas, encontraríamos, unidas em torno de uma metáfora central, uma série de outras metáforas periféricas, uma série de narrativas que foram se cristalizando como mitologia oficial ao longo do século XX. E com as quais Kusturica estabelece um duplo jogo semiótico entre real e ficcional.

É cinema como avesso do avesso; é o fantástico que já não consegue mais – nem quer mais - reconciliar as ordens da realidade e da ficção. A rigor, talvez essa seja, afinal, a essência de todo o cinema: dos filmes mais acanhadamente figurativos aos mais inflexíveis documentários, o cinema é sempre uma alegoria da alegoria, um transfigurativismo que, por meio da linguagem audiovisual, ressimboliza os contornos do real.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Coltrane

Coltrane: som-espaço
Para Ramon Negócio

Coltrane,
esse farejador de fúrias.
Essa síncope-devoção
à procura de Deus. 
E dos deuses sem Ele.

Toda a
Africamérica
germinando em
agudíssimos. 

Jazz de uma 
nota só:
implodir catedrais
e recriar o sagrado.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Caráter

The walking man, de Rodin: um meio em si mesmo

No início, era ainda pele,
arrepios.
Algum torpor.
Mas depois vieram as formigas
por sobre os sapatos.
E, sobre os restos
da ceia na lapela,
outros insetos.
À esquina,
pequenos roedores
atavam-lhe aos joelhos.
Logo, logo

terça-feira, 16 de junho de 2015

Madrugador

"Aurora Boreal", de Michael Creese: o sonho é quando?

Para Antonio José Maia e Ronaldo Salgado

Madrugador,
o olhar acorda.
Escuro de um sobressalto.
Na dúvida,
já é cedo?
Ou ainda é ontem?
Pergunta a
musculatura
retesada.
Ainda é véspera?
Essa noite finda,
reminiscência só,
de si, teimando
em sonhos prescritos.

domingo, 14 de junho de 2015

O fantasma nazista

Na montagem, nazistas na Champs-Elysées, em Paris: ontem e hoje 

por Valton de Miranda Leitão*

O modelo nazista de poder político e soberania nunca desapareceu da cultura ocidental após setenta anos da derrota do regime nazista, na II Guerra Mundial. Os pressupostos do pensamento nazi ficaram embutidos na mentalidade conservadora de setores intelectuais e políticos do ocidente, ressurgindo em muitos momentos deste período e agora reaparecendo com redobrada força em vários países e no Brasil. A intolerância e o preconceito contra as minorias se reagudizaram no nosso País, principalmente após o último pleito eleitoral, e tomaram a forma de um sentimento terrivelmente destrutivo de ódio, cultivado como se cultiva uma planta rara.
O jornalista alemão Timur Vermes, no livro “Ele está de volta”, mostra de maneira ficcional, mas certamente amedrontadora, o ressurgimento da visão nazista de mundo. O tema é tratado como uma comédia, mas nas dobras do humor, encontramos a presença do inimigo político que Carl Schmitt categorizou como presença universal em qualquer processo envolvendo o poder.

domingo, 7 de junho de 2015

Prefeitura quer rasgar o Plano Diretor

Vista aérea de Fortaleza: em aceno ao mercado
imobiliário, prefeitura quer acabar com as ZEIS

Diga-me pra quem governas e eu te direi quem és; e, em certos casos, também quem são teus fiadores. Enquanto Fortaleza amarga uma crise sem precedentes nas chamadas áreas sociais do governo municipal (educação, habitação e, principalmente, saúde), bem como um grave retrocesso nas políticas de assistência social do município (vide a desconstrução de equipamentos como os CRAS e os CAPS), a prefeitura, através da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA), vai desenvolvendo uma plataforma de leis e intervenções amplamente favoráveis ao mercado imobiliário e construtor, mas extremamente onerosas à democratização e ao controle do uso do solo urbano.
Na surdina, sem discutir com os movimentos sociais nem com a sociedade civil (o que tem sido a regra na gestão de Roberto Claudio), a Seuma pediu um parecer à Procuradoria Geral do Município (PGM) sobre a liberação de construção de imóveis situados nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) do tipo 3. A medida é um sonoro aceno político ao mercado construtor, mas também uma violência contra a essência do Plano Diretor Participativo (PDP), aprovado em 2009.

sábado, 6 de junho de 2015

Wally e Leminski

"Um escritor cujo gabinete se localiza nas dunas do barato...", "O futuro da poesia pode estar em Homero, por exemplo...", "O futuro da poesia é a recuperação de uma barbárie...", "Os poetas são todos profetas...". "Arte não tem nada a ver com entendimento..."
Wally Salomão e Paulo Leminski num encontro antológico sobre poesia, futuro e, claro, anos 80.


Millôr, um jornalista "sem fins lucrativos"

Millôr: "Nostalgia é nostalgia. Nem sempre é má. Só não dá quando
a vida toda ficou lá atrás, e já não era grande coisa". 

Em 2003, um jovem repórter entrevistava Millôr Fernandes para o jornal O POVO. Graças à generosidade de um amigo, esbarrei com essa entrevista pululando nos últimos dias pelas timelines do Facebook. Decidi reeditar por aqui para me reecontrar com a genialidade de um dos últimos grandes humoristas brasileiros. É o que segue...

Às vésperas de seu aniversário não-oficial de 80 anos, Millôr Fernandes, o mestre do humorismo brasileiro, diz que nunca brigou com ninguém na imprensa brasileira e que a idade reduziu seu potencial a 30%
Aos 18 anos, quando foi no cartório tirar a cópia da certidão de nascimento para finalmente fazer sua carteira de identidade, Milton Fernandes descobriu que, graças à caligrafia barroca do tabelião, seu nome fora registrado de um jeito diferente. No documento, a barra do t virara um acento circunflexo e o  n final ficara parecido com um r. Como a alteração do documento custaria 300 contos de réis, Milton achou por bem manter a nova grafia. Virou Millôr Fernandes.

domingo, 31 de maio de 2015

A reta



A reta é
a menor distância
entre duas certezas.
Dela, sabe-se,
mornamente,
da falta de desvios,
de ângulos,
de perspectiva.
Uma dieta 
geométrica
que nunca
nos deixa
olhar de lado,
que é
lado
e outro.
Falso compasso
de unidade.
A reta só.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A meritocracia servida de bandeja

O australiano Toby Morris, em sua coluna intitulada “The Pencil Sword” (A espada lápis), publicou recentemente “On a Plate”, uma ótima crônica em quadrinhos sobre desigualdades e privilégios sociais. A tradução foi feita pela turma do Catavento



Um diálogo com Richard Sennett

Ainda falando de Sennett, segue uma uma entrevista concedida ao projeto Fronteiras do Pensamento, em que o sociólogo e historiador norte-americano, professor da London School of Economics, do MIT e da New York University, fala sobre a relação entre música e seu trabalho intelectual, a diferença entre ele e seu colega Manuel Castells, a ineficiência do dinheiro enquanto motivador do trabalho, cooperação e independência, o Estado de bem-estar social, a supervalorização do conhecimento intelectual e a crise no mercado de trabalho, capitalismo social e outras questões que se apresentam no espaço urbano contemporâneo.

A ditadura da intimidade

Richard Sennett: a cidade como instrumento da vida impessoal 

Quando as estatísticas sociais e econômicas começaram a reverberar a emergência de uma nova classe média ao longo dos governos petistas, resultado da superação de parte importante da pobreza e da extrema pobreza no Brasil, que se mostravam crônicas e inexoráveis durante o horror econômico do governo FHC, muitos analistas alertaram para a emergência simultânea de um modelo de cidadania baseado majoritariamente no consumo. Essa cidadania estava fundada não na afirmação e consolidação de direitos, nem numa transformação estrutural mais profunda do País. Baseava-se apenas na inclusão social, pelo consumo, de milhões de brasileiros.
Isso fez com que os "cidadãos-consumidores", para usar a expressão de Canclini, de todas as classes sociais, desenvolvessem uma visão invertida sobre a política. Em vez de nos estimular a pensar e a se sensibilizar com os dramas nacionais em toda a sua complexidade, forçou, pelo contrário, o pensamento sobre os grandes problemas do País a convergir e a se adaptar aos limites de demandas individuais e estreitas da vida cotidiana. À sensibilidade pública, ao sentimento de construção coletiva de um país, o brasileiro vem exercendo uma retribalização atomizada, vem celebrando a lógica privada, que tenta "resolver" os problemas da esfera pública apenas no âmbito dos interesses e dos contratempos particulares.

Herbie Hancock, o camaleão

Essa fase de Herbie Hancock é uma das mais celebradas da sua carreira, embora alguns puristas torçam o nariz para o funk e os rudimentos eletrônicos que começavam a entrar em cena com o fusion. Besteira! Headhunters é um dos melhores discos da história da música. E a banda era fogo. Aqui uma versão explosiva de "Chameleon", que abre com um solo inacreditável de shekere. Vejam e creiam!

terça-feira, 26 de maio de 2015

O debate à beira do abismo

A vidraça e a violência: a palavra perdida volta como bala perdida

O psicanalista e professor da USP Christian Dunker escreveu esta semana, no blog da editora Boitempo, uma brilhante resposta a Rodrigo Constantino, colunista da revista Veja. Sua tréplica é, provavelmente, o texto mais produtivo aos que quiserem compreender a quantas anda e qual a lógica do debate público no Brasil. Em especial, num momento em que a direita e o pensamento conservador tentam rebaixar as pautas e as perspectivas dos debates, numa desonesta inversão de argumentos. E também numa perigosa direção de intolerância e violência.

Lembrei de Nietzsche e de seu alerta segundo o qual, ao se combater "monstros", há que se cuidar, aquele que combate, para não acabar se tornando um "monstro" ele próprio. "Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você", diz o filósofo alemão. Hoje, o que temos no Brasil, é o abismo do ódio, da ignorância e da intolerância a espreitar de muito perto os que se propõem a pensar o País para além de meia dúzia de chavões preconceituosos e frases feitas.  E aí nos vem a fadiga, o fastio. A sensação de que não vale a pena. De que temos de começar tudo do zero para dar conta do ponto sumário em que certos debatedores querem manter o diálogo.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A dor da gente não sai no jornal...

Huck, Angelica e as babás sem nome:
por quem dobram as panelas da Casa Grande? 

De uns tempos pra cá, as panelas da direita boçal andam dobrando em sonorosas cacofonias na Casa Grande brasileira. Não para mudar o País, mas para anular o outro. Para massacrar qualquer afirmação da alteridade, esse miolo da democracia com o qual os "homens de bem" (brancos, héteros, "pagadores" de impostos e "meritocratas") têm uma enorme dificuldade de lidar. Taí o jornal O Globo que não me deixa mentir. Eis uma tremenda aula de Brasil resumida num simples infográfico de jornal.
A lógica editorial que omite os nomes das babás no quadro acima reflete a mentalidade atávica daqueles que não lhes vêem - nunca viram e nunca verão -, como sujeitos de direitos. Para a "elite" brasileira (ou os tragicômicos candidatos a "elite"), as babás são expressão de um mito indistinto chamado "povo". São assim mesmo, apenas silhuetas desfiguradas, vultos sem rosto. Não têm direito a nome, à identidade, à história. Não possuem dignidade. São fantasmas opacos, a quem, se muito, dá-se o direito de apenas contemplar servilmente, da cozinha ou da área de serviço, os patrões em seus "paraísos" artificiais: seus carrões blindados, suas suítes nababescas, seus aviões particulares.
As paneleiras "angelicais" só costumam saber mesmo do país real quando elas (as babás) pedem demissão na sexta-feira e deixam o fim de semana das bacanas à míngua. E aí, haja grito e ranger de dentes. Haja desabafo - e sociologia de varanda gourmet - sobre a ignávia fundante do brasileiro. Acostumadas a viver numa cidade que é feita apenas de uma pálida e previsível sequência de espaços privados - os mesmos espaços estéreis e assépticos que vão procurar em suas viagens ao exterior, pululando de shopping em shopping mundo afora -, as danaides da "luta anti-corrupção", por não saberem conviver com o mais comezinho direito do outro, não sabem conviver com o espaço público. Assim, só conseguem espreitar o país real, quando outros vultos - sem nome, sem rosto, sem história - lhes arrombam o portão de entrada ou lhes espreitam ao sinal vermelho do próximo cruzamento. E aí, de novo, haja grito e ranger de dentes, além de apelos aparvalhados a favor da pena de morte ou da redução da maioridade penal, essa panaceia dos tolos.
Em seus gritos de "basta!" e que tais, as panelas das madames repicam para que a vida - as suas vidas! - possa(m), enfim, seguir seu ritmo "normal", sem sobressaltos. Com "segurança" e "tranquilidade". Para que Huck e Angélica - e seu país excludente e alienado - possam seguir adiante, divulgando a mais nova pasta de dente do mercado. Ou o mais novo condomínio em Miami. Para isso, entretanto, é necessário que as babás estejam sempre por ali, invisíveis e inefáveis. Sem nome, sem rosto, sem direitos.
Como diria Chico, a dor da gente não sai no jornal...

Em tempo: a edição do Globo é a dessa segunda-feira, 25; e as babás se chamam Francisca Mesquita e Marcileia Garcia.

Um terremoto sacode a política espanhola

Ativistas acompanham resultado das eleições em Barcelona:
"anti-sistêmicos" vencem em Barcelona e podem governar Madri 

O panorama político territorial espanhol conhecido até os dias de hoje ficou tremendamente abalado depois dos resultados eleitorais deste domingo. O veredito saído das urnas, com uma participação eleitoral ligeiramente inferior às de 2011, ofereceu resultados totalmente imprevisíveis há um ano atrás, nas vésperas das eleições para o Parlamento Europeu.
A espetacular virada eleitoral em cidades como Madrid e Barcelona, que poderão vir a ser governados por movimentos políticos catalogados de anti-sistêmicos, são uma fiel imagem da Espanha que amanheceu esta segunda-feira, após o terremoto político de domingo. As listas Agora Madrid e Barcelona em Comum, ambas com protaginstas do Podemos e movimentos sociais alternativos, foram a tradução eleitoral do movimento dos indignados do 15-M, nascido na praça madrilenha Puerta del Sol, na primavera de 2011.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Manifestar é preciso, mas não é exato

Manifestantes em ação no último dia 12: nem toda
 opinião está imune aos devaneios da consciência ingênua

Por Américo Souza

Em 1984 ocorreram, nos meses de março e abril, diversas manifestações em favor da eleição direta para presidente da República. Passados 31 anos, nos deparamos com novas manifestações, desta vez contra a atual presidente, eleita pelo voto direto.
Vários expressivos pensadores assumem a defesa da livre manifestação de ideias, independentemente dos temas que abordem. Noam Chomsky, linguista e filósofo estadunidense, conhecido por suas posições de esquerda, enfrenta com galhardia posições conservadoras em seu país e afirma que todos devem ter garantido o direito de se expressar. O mesmo dizia Paulo Freire, agente importante das “Diretas Já”, cujas ideias estranhamente parecem incomodar os manifestantes de hoje.
Em tempos assim, a grande questão que fica é relativa aos fundamentos do nosso pensar. Se por um lado a livre manifestação de ideais parece algo dado, por outro –indicam os teóricos da Escola de Frankfurt – importa pesar a influência da indústria cultural na determinação dos modos de perceber a realidade.
Nem toda opinião está imune aos devaneios da consciência ingênua. E convenhamos, atualmente, não é fácil posicionar-se de maneira totalmente livre e consciente. Uma professora experiente, ensinou-me que “quando o passarinho está mudando de pena, não canta”. Ou seja, devemos evitar emitir opiniões apressadas, para evitar o risco de graves enganos de interpretação. Há momentos para tudo, inclusive para calar.
Nem todos que se manifestam “livremente” o fazem exatamente com liberdade, já que a liberdade é o pleno domínio sobre nossas ideias e ações. Existem poucos, como foi Freire e como é Chomsky, cujo pensamento ingovernável estará sempre exposto, sem temores, diante dos outros pensamentos, mediocremente teleguiados por quem pauta de fato as manchetes que tão vorazmente consumimos. O exemplo que nos fica desses dois pensadores é fazer um esforço para que a mediocridade não nos consuma e, assim, possamos agir com e pela liberdade.

Américo Souza é historiador e professor da Unilab. Este artigo foi publicado originalmente na seção de Opinião do jornal O POVO. 

sábado, 18 de abril de 2015

Ednardo 70 anos - o canto da encruzilhada

Ednardo: Fortaleza como mote poético por excelência
"Eu venho das dunas brancas/ Onde eu queria ficar/ Deitando os olhos cansados/ Por onde a vida alcançar/ Meu céu é pleno de paz/ Sem chaminés ou fumaça/ No peito enganos mil/ Na Terra é pleno abril" - "Terral" (Ednardo)

Nem a vista das "dunas brancas" nem o "céu pleno de paz" impediram Ednardo de arribar de sua aldeia para tentar o "Sul, a sorte e a estrada". Os tempos eram de dificuldade política, mas também de muita esperança para aquela leva de artistas que partiam de diferentes pontos do Nordeste rumo ao "videotapes" e "revistas supercoloridas". Muitos acabaram sobrando na curva do destino. Outros tantos queriam apenas ver a "menina meio distraída" repetindo a voz dos cantores consagrados - como diziam os versos de "Carneiro", parceria de Ednardo com Augusto Pontes. Poucos conseguiram fazer história.
Na bagagem para São Paulo, onde desembarcou junto com o "Pessoal do Ceará" no início da década de 1970, Ednardo levou as memórias de uma Fortaleza ainda ingênua, que apenas começava a experimentar o "som e a velocidade" de novos tempos naquela virada dos 60 para os 70. Mas em vez de se perder no caldeirão de signos da metrópole e nas tretas do mercado fonográfico, a saudade da terra natal cravou marca na alma e virou um mote poético ao qual o compositor recorrentemente se voltou ao longo de mais de trinta anos de carreira.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

STF emplaca terceirização à moda FHC

Pleno do STF: terceirização à moda da casa

Por Tarso Cabral Violin*

Não passou nas TVs e rádios, pouco realçado nos jornais e internet. Mas nessa quinta-feira (16) o Supremo Tribunal Federal decidiu o futuro do Direito Administrativo e da Administração Pública brasileira.
O STF decidiu que a Administração Pública pode repassar a gestão de escolas públicas, universidades estatais, hospitais, unidades de saúde, museus, entre outras autarquias, fundações e empresas estatais que prestam serviços públicos sociais para entidades privadas sem fins lucrativos como associações e fundações privadas qualificadas como organizações sociais.
Foi na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923, proposta pelo PT e pelo PDT contra a Lei 9.637/98, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O STF decidiu pela constitucionalidade de quase toda a lei.

Passeio Público: Secultfor anula licitação

O café e o Passeio: uma "tenebrosa" transação?
Em documento assinado no último dia 8 de abril, o secretário de Cultura de Fortaleza, Magela Lima, anulou o resultado da licitação para ocupação do restaurante do Passeio Público, vencida pela OKA Comércio e Serviços LTDA em setembro do ano passado. Com a anulação, a empresa Café Passeio, que administra o local desde 2010 e que havia sido excluída da concorrência, volta concretamente ao páreo que vai decidir os novos administradores do restaurante. A decisão é o mais novo capítulo numa já longa novela, cheia de detalhes mal explicados - para dizer o mínimo.
A empresa Café Passeio - a mesma que, há quatro anos, possui contrato com a Prefeitura para administrar o restaurante - havia sido excluída da concorrência por, nos termos da Comissão de Licitação, não ter conseguido comprovar experiência no ramo alimentício. Ora, mas se não possuía experiência, por que, então, prestou e continuava prestando um serviço para a PMF justamente na área alimentícia? Já a OKA, que não tinha experiência efetivamente comprovada nessa atividade, é acusada de ter fraudado sua certificação técnica para poder concorrer à licitação. Ainda assim, foi declarada vencedora.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Mil palavras


Beatles, em show na França, junho de 1965.

A direita precisa de um "Bolsa Clichê"

Beneficiárias do programa: resta aos críticos conservadores
 do programa apenas o ódio de classe como argumento
(Foto: Divulgação/MDS)
Na mentalidade conservadora brasileira, ainda tão apegada à lógica da Casa e Grande e Senzala quando o assunto é discutir justiça social e (re)distribuição de riquezas, o Bolsa Família é o principal estatuto do "mal petista" que se abateu sobre o País. E, entre os inúmeros clichês e preconceitos que fundamentam a argumentação contra o programa, estava o do que o povo nordestino pobre, principal beneficiado pelas ações de transferência de renda previstas no programa, iria se tornar uma massa de vagabundos, preguiçosos e fornicadores, com uma insustentável explosão demográfica a legitimar o recebimento da tal "bolsa-miséria".
A realidade tratou de desconstruir mais esse mito - a exemplo de tantos outros que vêm sendo desconstruídos, como os que cercam as cotas raciais, etc. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), de responsabilidade do IBGE, entre 2003 e 2013, o número de filhos de até 14 anos caiu 10,7% no Brasil. Entre as famílias mais pobres, estrato social que inclui os quase 15 milhões de beneficiários do Bolsa Família, a queda foi de 15,7%. Já no Nordeste, a redução foi de quase 26,5% - maior redução entre todos os estratos de renda e região.
Com esses números, o preconceito classista e patrimonialista que move as estruturas mais profundas da mentalidade conservadora no Brasil não tem mais em que se amparar em relação ao Bolsa Família, senão em seu próprio ódio de classe e em sua atávica paranoia anti-petista. Outras frentes de resistência ao programa já vinham sendo desconstruídas ao longo dos últimos anos.
O desempenho escolar dos alunos beneficiados pelo programa é melhor do que aqueles que não o são. O orçamento global do programa é uma ninharia comparada às somas imorais destinadas à minoria rentista que se farta - sem um controle mais efetivo por parte do estado - nos papéis da dívida pública. Vale lembrar também que sete em cada dez beneficiários adultos do programa estão no mercado de trabalho – procurando emprego ou exercendo atividades precárias, com rendimentos insuficientes para manter suas famílias. Por fim, a ONU já saudou o programa como um exitoso exemplo de política "ganha-ganha" (ou seja, aquela onde toda sociedade se beneficia), com uma importante para o aumento do índice de desenvolvimento humano no País.
Em tempo: o valor médio do benefício é hoje de R$ 167 mensais. Como se sabe, uma "fortuna".

quarta-feira, 8 de abril de 2015

À luz de velas



Pornografia
pode

bem ser
o
recalque,

às vezes
desvio,

de uma
cumplicidade
que não
veio.

No jantar à
luz
de
velas,

aniversário
de 20 anos

de casados,

por isso, essa
falta de jeito.

Ali, só
os dois.

E esse
garçom que
nunca

chega.

E esse guardanapo
de linho
à minha
frente,

que nunca
terminamos

de dobrar.

A pornografia,
essa tristeza
feito contradança
que se dança
sozinho:

mesmo
a dois.

À luz de
velas.

Bem pode
ser.


segunda-feira, 6 de abril de 2015

A cultura como reparação

Paulo Linhares em foto de Rodrigo Carvalho, do O POVO:
a cultura como impotência civilizatória? 
Em entrevista ao caderno Vida & Arte, na edição de hoje do O POVO, o sociólogo Paulo Linhares,  presidente do Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC) – motor criativo e gerencial do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - afirmou que “política de cultura não é uma política de reparação social”. A frase se deu em meio a uma (boa) reportagem feita pela jornalista Raphaelle Batista, em que Paulo rebate algumas tantas críticas ao Porto Iracema das Artes, núcleo de formação do Dragão, e anuncia o porvir da instituição, a partir de outras tantas parcerias.
“Reparação social, quem quiser fazer, vá fazer na área social. Eu faço política de cultura, não tenho que reparar nada”, disparou. “Acho absurdo cobrar das políticas culturais reparações sociais. Sou contra esses contratos que dizem assim: ‘em contrapartida a um espetáculo você faz não sei o que, não sei o que social’. Pra que isso? A gente não está aqui para fazer reparação social. Se a gente fizer cultura bem feita, a gente está fazendo mudança social muito mais veloz, com muito mais competência”.
Provocador inteligente e de inegável competência midiática, Paulo certamente se fiou em sua verve publicitária para tentar defender e legitimar sua cria. Um projeto que pode ser considerado tão mais audacioso quanto mais compreendermos quão miserável ainda é o Ceará, estado que já há uns bons 30 anos convive com a sombra do próprio Paulo nos bastidores ou nos holofotes das políticas públicas de cultura.

A arte de escrever para idiotas


Por Marcia Tiburi e Rubens Casara*

Em nossa cultura intelectual e jornalística surge uma nova forma retórica. Trata-se da arte de escrever para idiotas que, entre nós, tem feito muito sucesso. Pensávamos ter atingido o fundo do poço em termos de produção de idiotices para idiotas, mas proliferam subformas, subgêneros e subautores que sugerem a criação de um nova ciência.
Estamos fazendo piada, mas quando se trata de pensar na forma assumida atualmente pela “voz da razão” temos que parar de rir e começar a pensar.
Artigos ruins e reacionários fazem parte de jornais e revistas desde sempre, mas a arte de escrever para idiotas vem se especializando ao longo do tempo e seus artistas passam da posição de retóricos de baixa categoria para príncipes dos meios de comunicação de massa. Atualmente, idiotas de direita tem mais espaço do que idiotas de esquerda na grande mídia. Mas isso não afeta em nada a forma com que se pode escrever para idiotas.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

A paixão de casa não faz milagre

Torcida do Ceará no PV: o ponto fora
da curva causa prejuízos à banca
Parafraseando Caetano, a paixão é senhora; desde que o futebol é futebol é assim. Tentar deslegitimar a paixão de um torcedor cearense por um clube de fora do Estado seria algo xenófobo e obtuso, que não compreenderia o fundamento mesmo do esporte. Nosso problema, portanto, não são os daqui que torcem por times de fora - em geral do Rio de Janeiro que, historicamente, se consolidou como o polo mais carismático do futebol brasileiro (em que pese a presença crescente dos times paulistas no coração dos torcedores de gerações mais novas).

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Max Ernst (1871-1976), aniversariante do dia






A fraude têxtil e o vácuo institucional

Cruzamento da Alberto Nepomuceno com José Avelino,
no Centro de Fortaleza: a feira e o vácuo institucional
Ao longo desta semana, o jornal O POVO tem publicado uma corajosa e minuciosa série de reportagens, assinadas pelo repórter Claudio Ribeiro, sobre as movimentações milionárias (e fraudulentas) de empresas que abastecem o comércio popular de Fortaleza, a exemplo do comércio têxtil da José Avelino, no Centro. Tem tubarão nesse ramo que chega a faturar mais de R$ 1 bilhão (isso mesmo, caro leitor, R$ 1 BI)  por ano com a venda de roupas e tecidos, sonegando somas igualmente imorais. O esquema envolve empresários e contadores, num "negócio" que vai se estendendo por vários quarteirões (e também galpões) da área. 
Entretanto, para além do aspecto financeiro-econômico, o que mais chama atenção nesse caso é a questão da (falta de) fiscalização/controle urbano. O vácuo institucional que cerca a feira da José Avelino constitui uma enorme desmoralização a quem de direito. 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Ética à Aldeota

O livro-tabu: uma nobiliarquia urbana
de fraudulenta cepa

Há uns 50 anos, no seu insuperável "Aldeota", o grande Jáder de Carvalho já descascava a origem criminosa de grandes fortunas de Fortaleza e do Ceará - baseadas, sobretudo, na pilhagem imobiliária e no contrabando. Sobre o livro, aliás, ainda hoje pesa a insustentável leveza do silêncio de boa parte da imprensa local e dos circuitos literários tupinambás. 
A lembrança de Jáder e do livro deve-se ao fato de que, recentemente, seguidas operações da Polícia Federal e do Ministério Público, por aqui e alhures, têm confirmado seu vaticínio e lançado luzes sobre outras tantas figuras do nosso "high society" de fraudulenta cepa. A mesma elitezinha canastrona que vai às ruas pedir "ética" e clamar pelo "fim da corrupção" - aquela turma que, como bem diz Tom Zé, faz suas orações uma vez ao dia e depois manda a consciência junto com os lençóis para a lavanderia -, vira e mexe, de uns tempos pra cá, vem escorregando em manchetes de jornal ou postagens da blogosfera e aparecendo de "grampo na mão".

domingo, 22 de março de 2015

A Ponte

"A Ponte", do surrealista Afmach: um pêssego e um país


Para cruzá-la ou não cruzá-la 
eis a ponte

na outra margem alguém me espera 
com um pêssego e um país

trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar

venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra

nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco

eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país.


Poema "A ponte", de Mário Benedetti, poeta e romancista urguaio

terça-feira, 17 de março de 2015

A libido reacionária

Reich: da inibição sexual ao medo de liberdade

Há um livrinho, chamado Psicologia de massas do fascismo, de Wilhelm Reich, que pode ser muito esclarecedor para esses dias, em que tantos - e não apenas "azelites" mas também setores expressivos da classe média que tanto se beneficiou das políticas de inclusão social dos últimos 12 anos -, foram às ruas defender sem maiores constrangimentos morais e intelectuais o golpismo, a "intervenção militar", a violência de gênero, entre outras bandeiras tão "democráticas" e "edificantes" - que, ao cabo, só se propõem mesmo a interditar a política, o desejo e a vida.

domingo, 15 de março de 2015

Diz que não fui por aí...

Pequenos fascistas italianos nos anos 40: a direita
como território opaco do esquecimento
Se alguém perguntar por mim, diz que não fui por aí. Não vou me juntar aos broncos nessa marcha da insensatez, nessa saturnália da direita festiva. E que festa pobre! Pobre de sentido, de verdade, de honestidade.
Os tais "homens de bem" reivindicam, no plano público, a moralidade e a ética que são incapazes de reproduzir no âmbito privado. Os "defensores da pátria" refugiam-se no patriotismo (o último refúgio dos canalhas, como se sabe), quando, a rigor, servem de correia de transmissão aos que querem vender nossas riquezas, alienar nossa auto-determinação. Os "pagadores de impostos" ostentam o discurso patológico da "ameaça comunista", quando, na verdade, só sabem viver por dentro e à sombra do Estado frondoso, maquinando "jeitinhos" e benesses que tornam nossa experiência capitalista um regime ainda mais doente: uma livre-iniciativa patrimonialista ou um patrimonialismo de mercado.