domingo, 27 de setembro de 2015

Underground: o cinema como avesso do avesso

Underground: a realidade fadada ao fracasso como narrativa racional
Underground, lançado por Emir Kusturica há exatos vinte anos, é, com o perdão da cacofonia, uma meta-alegoria. Se quiséssemos destrinchá-lo em camadas, encontraríamos, unidas em torno de uma metáfora central, uma série de outras metáforas periféricas, uma série de narrativas que foram se cristalizando como mitologia oficial ao longo do século XX. E com as quais Kusturica estabelece um duplo jogo semiótico entre real e ficcional.

É cinema como avesso do avesso; é o fantástico que já não consegue mais – nem quer mais - reconciliar as ordens da realidade e da ficção. A rigor, talvez essa seja, afinal, a essência de todo o cinema: dos filmes mais acanhadamente figurativos aos mais inflexíveis documentários, o cinema é sempre uma alegoria da alegoria, um transfigurativismo que, por meio da linguagem audiovisual, ressimboliza os contornos do real.


Kusturica, entretanto, eleva ao quadrado essa semiose. Tanto que Underground é, também, uma delicada meta-alegoria do próprio cinema, que se evidencia nos traços fellinianos da direção e da composição dos personagens. Fellini, afinal, foi o cineasta que melhor declarou, em seus filmes, que a realidade estava sempre e inexoravelmente fadada a fracassar como narrativa racional.

O filme traz, portanto, a meta-alegoria da guerra dos bálcãs, da eugenia nazista, da instabilidade política que atravessou parcela significativa do último século iugoslavo (sobretudo, a partir da segunda guerra mundial), da fraternidade como reduto cristão do perdão, etc. Ou seja, um conjunto periférico de discursos - históricos, políticos, étnicos, bélicos – cuja relação com o real vai sendo desconstruída por Kusturica por meio de novas metáforas, de novas ressignificações.

Uma dessas meta-alegorias vai tratar do trabalho. Ou melhor, de uma narrativa sobre o tema, qual seja, a da “alienação” do trabalho. Como todo conceito, a síntese marxista acerca do estranhamento entre o trabalhador e o produto de seu trabalho, que vai fazer ferver o caldeirão de signos em torno da noção de luta de classes proposta pelo filósofo alemão, é, por si só, uma alegoria, uma travessia semiótica feita pela linguagem para fazer aderir sentidos ao campo do real.

Kusturica vai se apropriar dessa noção para criar um enredo, ao mesmo tempo irônico e tragicômico, sobre os sentidos dessa “alienação”, aqui tratada como uma ideia "fora do lugar", já que é explorada em pleno regime comunista, numa sociedade teoricamente sem classes. O conceito marxista é levado ao pé da letra, em seu nível semântico. Um grupo de refugiados num porão de uma casa não é avisado que a segunda guerra terminou e vive por mais de duas décadas no subsolo produzindo armas para a suposta “resistência” balcã aos nazistas. O único contato deles com o mundo real é um contrabandista fanfarrão que acaba sendo alçado à condição de ministro do governo Tito.

O diretor discute como a “alienação” do trabalho e, principalmente, a “alienação” pelo trabalho, em vez de fermentar o “sentimento revolucionário” contra a exploração, mantém os operários animados e resolutos em ajudar o regime que acaba por lhes oprimir. Ou seja, o trabalho que supostamente lhes libertaria, condena os refudiados a uma existência perpétua no “subsolo”, absortos na inconsciência em relação à estruturas que efetivamente controlam sua força produtiva. É , portanto, a ressignificação do entendimento marxista de que a livre atividade consciente é que vai definir o homem em sua plenitude, de que o trabalho “alienado” é apenas meio de vida, e não a vida em si. Os personagens de Kusturica são colocados diante da mesma lógica de exploração do homem pelo homem, típica do regime capitalista. Aqui, porém, essa lógica aparece com sinais trocados.

Um dos grandes filmes desse diretor iugoslavo, Underground é uma linda e bem humorada fábula sobre corrupção na política; sobre como o aparelho simbólico da propaganda pode nos levar ao fanatismo e à solidão. E, principalmente, sobre como dar adeus às ilusões (religiosas, afetivas, ideológicas, etc) através de uma outra ilusão (o cinema), o que acaba por nos jogar, desamparados, ao mais duro chão da realidade.


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