sábado, 6 de junho de 2015

Millôr, um jornalista "sem fins lucrativos"

Millôr: "Nostalgia é nostalgia. Nem sempre é má. Só não dá quando
a vida toda ficou lá atrás, e já não era grande coisa". 

Em 2003, um jovem repórter entrevistava Millôr Fernandes para o jornal O POVO. Graças à generosidade de um amigo, esbarrei com essa entrevista pululando nos últimos dias pelas timelines do Facebook. Decidi reeditar por aqui para me reecontrar com a genialidade de um dos últimos grandes humoristas brasileiros. É o que segue...

Às vésperas de seu aniversário não-oficial de 80 anos, Millôr Fernandes, o mestre do humorismo brasileiro, diz que nunca brigou com ninguém na imprensa brasileira e que a idade reduziu seu potencial a 30%
Aos 18 anos, quando foi no cartório tirar a cópia da certidão de nascimento para finalmente fazer sua carteira de identidade, Milton Fernandes descobriu que, graças à caligrafia barroca do tabelião, seu nome fora registrado de um jeito diferente. No documento, a barra do t virara um acento circunflexo e o  n final ficara parecido com um r. Como a alteração do documento custaria 300 contos de réis, Milton achou por bem manter a nova grafia. Virou Millôr Fernandes.

Com o novo nome, tornou-se o mestre dos humoristas brasileiros, responsável por uma extensa e luminosa produção intelectual ao longo de quase 60 anos de militância no jornalismo, no teatro, nas artes plásticas e na literatura. "Jornalista sem fins lucrativos", como faz questão de ressaltar, trabalhou em quase todos os veículos da grande imprensa brasileira. E da nanica também, sendo o fundador da revista Voga - de vida curta nos anos 50 - e se colocando como um dos homens de frente de O Pasquim - cujo relançamento no ano passado critica veementemente.
Como dramaturgo, Millôr escreveu alguns dos principais sucessos do teatro brasileiro nos últimos quarenta anos (Liberdade, liberdade; É; Os órfãos de Jânio; etc) e traduziu a fina flor da dramaturgia mundial: de Molière a Shakespeare, de Harold Pinter a Tennessee Williams. "Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos", ele escreveu em Autobiografia de mim mesmo (1968), seu texto de estréia na revista Veja, onde trabalhou por 14 anos.
Além do nome diferente, a certidão de nascimento de Millôr trazia uma outra confusão. Oficialmente, ele teria nascido no dia 27 de maio de 1924, data da emissão do documento. Mas segundo vários perfis biográficos escritos sobre o humorista - um deles para a eleição do brasileiro do século promovida pela revista Istoé em 2000, outro para a edição deste mês da revista Bravo! -, a data oficial seria resultado de um atraso por parte do espanhol Francisco Fernandes, o dom Paquito, seu pai, que demorou a registrar o filho. O correto seria o dia 16 de agosto do ano anterior, o que anteciparia o seu aniversário de 80 anos para 2003.
O próprio Millôr desconversa ao ser perguntado sobre as duas datas. "O fato real é que completo 79. A confusão é uma longa história. Aceite a que achar melhor", ele afirmou numa entrevista concedida ao Vida & Arte na última semana de junho. Por e-mail, que o homem anda desconfiado com entrevistas gravadas. Prestes ou não a completar 80 anos, o fato é que o humorista se diz incomodado com a passagem do tempo: "Meu potencial foi diminuído a 30%, em todos os sentidos".
Na entrevista, Millôr, que não é lá muito chegado a nostalgia, topou olhar para trás. Em respostas rápidas, quase telegráficas mas irresistivelmente inteligentes, falou sobre sua infância no bairro carioca do Méier, sobre o início da carreira no jornalismo, sobre suas fábulas (que deram origem a seu novo livro, 100 fábulas fabulosas, uma compilação lançada recentemente pela editora Record) e sobre as lembranças de amigos e de episódios pitorescos - como a invenção do frescobol na praia de Copacabana ou o vice-campeonato de pesca mundial de atum.
"Vivo para a frente e compreendo para trás", resume. Oficiais ou não, as comemorações pelos 80 anos do decano do nosso humorismo já começaram.

O POVO - Antes de mais nada, o senhor passou a preferir dar entrevistas por escrito. Por quê?
Millôr Fernandes - Óbvio. Escrevendo sai o que escrevo, falando sai o que vocês bem (ou mal) entendem.

OP -Em se tratando de entrevistas, o senhor deve ter respondido (ou não) a muita pergunta besta. Ou pelo menos, digamos, curiosa. Alguma história nesse sentido?
Millôr - Não digo bestas. As pessoas sabem apenas uma biografia minha, e eu não posso inventar outra. Muita coisa que digo me atemoriza de dizer falando porque se torna ofensiva a pessoas a quem não tenho o menor interesse em ofender. Não ofendo ninguém. Não ofendo nem a Sarney. Ele é que nos ofende.

OP - Este ano, o senhor completa oitenta anos (de fato, porque de direito é só no ano que vem). A passagem do tempo lhe incomoda? Como o senhor lida com isso?
Millôr - O fato real é que completo 79. A confusão é uma longa história. Aceite a que achar melhor. A passagem do tempo me incomoda tanto quanto incomoda a quase todo mundo. Meu potencial foi diminuído a 30%, em todos os sentidos. Mas, pra só falar em libido, que é a que a maior parte das pessoas se refere quando fala em idade; você em algum momento chegou a usar 30% do seu potencial?

OP -Sei que, assim como a ideologias, o senhor tem ojeriza a nostalgia. Mas ainda assim queria falar um pouco sobre o passado. Qual a sua primeira lembrança como criança?
Millôr - Nostalgia é nostalgia. Nem sempre é má. Muitas vezes dá pra curtir. Só não dá quando a vida toda ficou lá atrás, e já não era grande coisa. Minha primeira lembrança foi quando minha mãe me deu à luz (com crase, por favor) e eu pensei: "Nesta o Freud sifu.'

OP - De que maneira a infância passada no Méier foi decisiva para a sua formação? Que lembranças o senhor traz daquele período?
Millôr -Decisiva. O mundo é o Méier. A vida é o Méier. Muitas lembranças. Mas nem 30% (olha o percentual, de novo) de minha vida, lembranças, amores, estertores, estão ligados a isso.

OP - Apesar de ter nascido em 1923, o pai do senhor só lhe registrou no ano seguinte. Por que essa demora?
Millôr - Já falei. E o registro é 24. Impossível saber, se até o nome não era meu nome.

OP - O nome Millôr nasceu de uma trapalhada do tabelião. Por que o senhor decidiu adotá-lo (o nome) no lugar de Milton?
Millôr - Não trapalhada. O homem era um tremendo calígrafo e o nome ficou tão bem feito que virou outro. Adotá-lo foi apenas natural. Você hesitaria entre Milton e Millôr?

OP - A tua descoberta do desenho se deu com a chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, na década de 30. Como foi isso? Que histórias eram essas? Que personagens te marcaram?
Millôr- Pra ser exato - 1934. Flash Gordon. Alex Raymond. Depois Milton Caniff. Depois Harold Foster. É só consultar a história dos quadrinhos com muito mais gênios do que muitas galerias de "arte".

OP - O início do profissionalismo se deu com a publicação, aos 14 anos, de um trabalho em O Jornal. Depois vieram A Cigarra e  O Cruzeiro. Quais foram suas primeiras lições de jornalismo? Como foram esses primeiros tempos de profissão?
Millôr - A minha primeira lição de jornalismo: ganhar a vida. Tome ganhar a vida no mais amplo sentido da palavra. Mas, na verdade, a gente só pode dizer que ganhou a vida - os outros é que dizem - quando a perdemos definitivamente.

OP - Algumas leituras parecem ter lhe influenciado bastante: Shaw, Steinberg, Proust, Kant (de quem o senhor chegou a escrever uma biografia fictícia, em Tempo e Contratempo, de 1954). É por aí? Quem mais entra nessa lista?
Millôr - Kant não, só brincadeira. Shaw, Proust, Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, não propriamente influências. Li tanto que as influências se diluem.

OP - Em 1948, o senhor trabalhou como correspondente de O Cruzeiro em Hollywood, onde conviveu com Vinícius de Moraes e Carmen Miranda. Que lembranças o senhor traz desse período? Alguma história pitoresca envolvendo o Vinícius?
Millôr - Carmem Miranda e o marido, David Sebastian, jogando cartas comigo, sempre se riam de mim, quando eu dizia que eles estavam roubando (sheating) e dizia que eles estavam cagando (shiting). Vinícius, 36 anos então, me levou a uma festinha onde passou a noite namorando a moça numa cadeira de rodas. Cesar Lattes, o cientista, disputava nado comigo na piscina de Carmem Miranda. Lattes tinha a mesma idade que eu e acabara de descobrir o Meson PI. Me ganhava sempre.

OP - O senhor ostenta o título de vice-campeão mundial de pesca de atum sem nunca ter visto um atum fora da lata. Como foi esse episódio?
Millôr - Uma infindável história, que resumo. Em Newfoundland (Canadá), no maior pesqueiro de atum do mundo, com 32 país disputando, três dias de pesca, de 4 da madrugada a 4 da noite, só a Argentina pescou um peixinho de oitenta libras, quarenta quilos. Todos os outros países foram segundo colocados e ganharam uma tacinha de latão. Mas de VICE.

OP - Foi a turma do senhor que, em Copacabana, inventou o frescobol. Como surgiu a idéia de inventar "o único esporte em que ninguém ganha"?
Millôr - Como em tudo de que participei na vida, isso aconteceu. Não houve nada programado. Não houve nenhum gênio inventor da lâmpada. Quando percebemos estávamos jogando frescobol. E Deus viu que isso era bom.

OP - O senhor já passou por todos os grandes jornais e revistas do País. E também brigou com quase todos. Qual a sua relação com a grande imprensa hoje? Que avaliação o senhor faz da imprensa brasileira?
Millôr - Nunca briguei com ninguém. Você acha que, se trabalho 25 anos numa revista, como superstar, e, quando viajo, a revista, não sabendo se livrar de um problema normal, escreve um puta editorial contra mim, estou brigando, então, conserve o seu emprego.

OP - A retomada do Pasquim pelo Ziraldo lhe agradou?
Millôr - Não desagradou. A edição do Pasquim em 2001 é uma traição intelectual de um irrecuperável estupidez. Porque é uma traição intelectual. E porque a estupidez é visível. O fato de contar com alguns colaboradores de qualidade (poucos) não transforma aquilo em nada de valor como imprensa.

OP - Qual o legado que o Pasquim original deixou para a imprensa brasileira?
Millôr - É difícil medir. Mas não tem paralelo.

OP - Vamos falar do novo livro. A fábula, assim como o Hai-Kai, é um gênero que sempre esteve presente no teu trabalho. Como nasce o seu interesse por esse gênero?
Millôr - Tenho interesse por tudo. Dos Hai-Kais só me lembro que comecei a fazer em 1946. Fábulas eu disputava com Esopo pra ver quem fazia melhor. Esopo, um moralista barato, me achava muito imoral.

OP - Qual o critério que o senhor usou na hora de reunir as fábulas desse novo livro?
Millôr - Fui juntando e contando até 100. Devo ter mais trezentas. Não sou um intelectual. Sou um trabalhador braçal.

OP - Qual a moral desse livro?
Millôr - Uma a uma. Nenhuma que, espero, seja conceito comum. Todas, espero, que venham a sê-lo.

OP - Quando se fala em fábulas, os primeiros nomes que vêm à tona (depois de Millôr Fernandes, é claro) são os de Esopo e La Fontaine. O senhor vê alguma semelhança entre o seu trabalho e o desses escritores?
Millôr - Já disse alhures (!): são tias velhas.

OP - Certa vez, o senhor afirmou que qualquer idéia, com mais de seis meses, deve ser reformada. O humor do senhor, porém, (e essas fábulas, algumas das quais escritas há mais de quarenta anos, são sintomáticas disso) parece não envelhecer ou ficar datado. O senhor seria a exceção que comprova essa regra?
Millôr - Que alguém me considere exceção é problema dele. Mas eu não falei isso. Falei parecido o que pode ser completamente diferente. A idéia deve ser checada, desconfiada, etcetera. Só o Lula e outros redentores pensam que vão modificar tudo, que está tudo errado. Tem muita coisa certa, eu, por exemplo, quando digo isto.

OP - Que avaliação o senhor faz desses seis primeiros meses do governo Lula?
Millôr - Sinceramente, acho que a ignorância lhe subiu à cabeça. Mas isso não é seu pior defeito.

OP - O que se perdeu entre a esperança que venceu o medo no ano passado e o medo que hoje parece estar vencendo a esperança?
Millôr - O medo não era meu. Era da Regina Duarte, refletindo outros. A esperança continua. Eu já disse: o Brasil é um país condenado à esperança.

OP - Sempre que o assunto é Millôr Fernandes, os comentários são sempre elogiosos. O senhor é sempre um dos maiores intelectuais, um dos maiores humoristas, um dos maiores desenhistas e por aí vai. Como o senhor lida com essa glória?
Millôr - O pessoal se satisfaz com muito pouco.

OP - Em A Bíblia do Caos, o senhor só reclama de não ser incompreendido o suficiente. Aos 80 anos, essa compreensão de sua obra aumentou ou diminuiu? E o senhor? Compreende a própria obra?
Millôr - Onde é que acaba a sinceridade profunda e começa o trocadilho - até mesmo inteligente?

OP - O que o senhor pode nos adiantar sobre seus próximos projetos?
Millôr - Não, não tenho e nunca tive qualquer projeto. Talvez tenha alguma coisa que "entregar". Pode ser até que já tenha entregue sem saber. Vivo pra frente e compreendo pra trás. Outra vez a proporção - 30%.

Elogio e ironia a Alencar
Na primeira tentativa de contato com Millôr Fernandes, é o próprio quem atende o telefone - depois, claro, de se certificar da origem da ligação na secretária eletrônica. "Como vai essa terra linda, rapaz, terra de Alencar?", vai puxando conversa. E depois, já por e-mail, emenda: "Numa das obras mais importantes de nossa literatura, e sobretudo da literatura do Ceará, o índio Peri, apaixonado pela granfina Ceci, vê-se junto dela no meio de um dilúvio. A paixão aumenta o poder de seus músculos. Com esforço gigantesco agarra-se a uma enorme palmeira e arranca-a com raiz e tudo. A árvore é arrastada pela correnteza. Peri põe a amada sobre o tronco, e os dois desaparecem na linha do horizonte. José de Alencar, o grande escritor esqueceu, apenas, de dizer que foi a primeira vez em que um colonizado começou a destruir o meio ambiente pra servir às classes dirigentes".

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