quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A "praga" de farmácias e a cidade adoecida

Pintura de Ernest Descals: o novo não-lugar preferido dos fortalezenses

Em Fortaleza, noves fora as vendas de açaí, as farmácias são o principal denominador comum de uma paisagem urbana entristecida, suja, adoecida. Esquina sim, esquina não, pululam numa assepsia obtusa centenas de unidades farmacêuticas em meio às nossas patogenias citadinas. 




Nos anos 40, éramos cerca de 200 mil habitantes e mal contávamos 20 farmácias (uma para cada 10 mil habitantes). Dados de março deste ano do Conselho Regional de Farmácia no Ceará (CRF-CE) mostram que Fortaleza conta com 818 farmácias e drogarias. Trocando em miúdos (para a atual população de 2,7 milhões pessoas), chegamos a um estabelecimento do tipo para cada 3,2 mil habitantes - proporção maior que a de São Paulo. A previsão do setor, alardeada indistintamente pela imprensa, é de mais e mais unidades até o fim do ano.

À primeira vista, nossas incontáveis boticas formam um quadro surreal de volúpia empreendedora que se ergue em meio à desesperança econômica de um país devastado por um golpe político. Olhadas mais de perto, revelam a concretude do ridículo atávico de nossa existência como moradores de uma cidade que não sabe compartilhar nem fruir o espaço público. As farmácias são uma espécie de nova lombra, o novo não-lugar preferido do fortalezense, outrora mais chegado ao fedor de gasolina, aos fragorosos paredões de som e à impessoalidade luminosa dos postos de combustível.

Recente, o Le Monde Diplomatique trouxe uma matéria mostrando como a austeridade radical imposta à Grécia desde 2010 não somente devastou a economia e inviabilizou qualquer projeto de país para os gregos, mas também fez disparar o consumo de remédios. Em particular, psicotrópicos, ansiolíticos e antidepressivos (o link para a reportagem segue ali embaixo). Nada poderia ser tão Fortaleza.

O desemprego, o sucateamento do país e o impacto do forte endividamento das famílias agravaram de modo muito violento a saúde das pessoas. A "praga" de farmácias se proliferando entre nós revela, entre outros tristes tópicos, que nosso bem-estar - mental e físico - se deteriorou fortemente ao longo dos últimos anos. Pior: nosso pulsar pela cidade está anestesiado. De um lado, corrompido pela lógica privada de uso do espaço público; de outro, interditado pelo pavor irracional com a insegurança - e com a irracionalidade das políticas de segurança.

Para além e aquém da crise econômica, nossa institucionalidade municipal também dá sua contribuição ao caos, cínica e incapaz de lidar com urgentes questões públicas - mais afeita que é às tenebrosas transações privadas celebradas nos bastidores do poder e nos arranjos legislativos. Perdemos nossas praças, nossas dunas, nossos centros de cultura e convívio; estamos perdendo nossas praias. Isolado e pressionado, o Cocó resiste (a duras penas) como a última fronteira de saudável civilidade entre os ecossistemas da cidade e seus moradores. E por aí segue o cortejo da nossa tragédia. Os sintomas são inúmeros.

Fortaleza perdeu-se de si e adoeceu.

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