quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Bacurau: o sertão da resistência

Antes tarde do que nunca: enfim, Bacurau! Se for ver, vá na paz, mas faço uma advertência por ora, esta postagem contém spoilers. Vamos lá...
Lá pela primeira meia hora de filme, há uma cena que mexeu com minhas lembranças fellinianas. Uma dupla de motoqueiros, devidamente "fantasiados" de praticantes de esportes radicais, desafia a paisagem dura e taciturna do sertão de Bacurau, trazendo para a tela um contraste tão surreal e risível quanto a corrida de carros que, no "Amacord", cruza a pacata cidade das memórias de Fellini. Pois é naquele ponto, na contraposição que se estabelece entre a paisagem árida e os "aventureiros" coloridos e descolados, que duas sociedades se cruzam e se atravessam.
Não necessariamente o moderno e o arcaico, ou o provinciano e o cosmopolita. Essas fronteiras, precárias por demais, não servem ao jogo estabelecido por Kleber Mendonça Filho - Bacurau faz questão de escapar a esse esquematismo. Pelo contrário, ele suspende o tempo (o filme se passa num futuro indeterminado) e torna cinzenta essas margens, colocando em contato duas formas absolutamente incompatíveis de sociabilidade que se contrapõem não no plano cronológico, mas num plano ético e político.
Uma é profundamente adoecida, indiferente ao outro. Representa um tipo de sensibilidade etnocêntrica que não nutre qualquer empatia em relação à vida dos que lhe são alheios - e, por isso, passam a ser matáveis. Não por acaso, aliás, alimenta tanto o fetiche por armas. São os norte-americanos em relação ao resto do mundo, os sulistas brasileiros em relação aos nordestinos (uma das melhores cenas do filme é o casal do Sudeste se justificando aos gringos de que não faz parte daquela paisagem sertaneja, que são "brancos" e não são dali), a classe média em relação à periferia e por aí vai. 
É uma civilização que vive o que Byung-Chul Han (num livrinho que tem me desparafusado as ideias) classifica como agonia do eros: um embrutecimento narcisista que é sintoma de seu esgotamento como sociedade, que não consegue se libertar para o outro e, portanto, passa a alimentar perversões contra qualquer tipo de alteridade, passa a querer destruí-la, esmagá-la ou, no caso do filme, levianamente matá-la. 
A outra sociedade, com a qual essa primeira entra em choque, é uma sociedade que, sobretudo, resiste e seus próprios termos. É formada por outros saberes, outras formas de solidariedade. Enraizada em consciências ancestrais, em partilhas e afetos tocantes, mas também na valentia da sobrevivência. Um caldo afroameríndio que prega a paz do igualitarismo, e que sabe cuidar de sua dor com altivez e resiliência; um povo que transcende a moral cristã da culpa maniqueísta - aliás, no vilarejo, não há padres nem pastores e a igreja foi desativada ninguém sabe dizer quando por completa falta de interesse de seus moradores. 
O sertão de Kleber está em lugar nenhum porque não se presta a localismos. Seus filhos, nos informa um dos personagens, se espalharam pelo mundo, estão aqui e lá. São médicos e putas, engenheiros e michês, mas não há ladrões entre os seus. Eles manuseiam celulares e tablets e também saberes seculares. Em Bacurau, o sertão desafia a inércia do remédio tarja preta que é distribuído pela prefeitura, uma das melhores alegorias do filme.
Um arrebatador caldeirão de signos, Bacurau é cinema em plenitude. E também é vida que se anuncia na urgência da inconformidade. É uma linda e violenta crônica em homenagem aos índios, aos quilombolas, aos LGBTs, as sertanejos. Enfim, às minorias diariamente exterminadas nesse Brasil tão cronicamente inviável e bolsonarista.
Há um tipo sociedade que quer nos matar. Em Bacurau, há um povo que não vai se conformar em morrer.

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