quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Bacurau: o sertão da resistência

Antes tarde do que nunca: enfim, Bacurau! Se for ver, vá na paz, mas faço uma advertência por ora, esta postagem contém spoilers. Vamos lá...
Lá pela primeira meia hora de filme, há uma cena que mexeu com minhas lembranças fellinianas. Uma dupla de motoqueiros, devidamente "fantasiados" de praticantes de esportes radicais, desafia a paisagem dura e taciturna do sertão de Bacurau, trazendo para a tela um contraste tão surreal e risível quanto a corrida de carros que, no "Amacord", cruza a pacata cidade das memórias de Fellini. Pois é naquele ponto, na contraposição que se estabelece entre a paisagem árida e os "aventureiros" coloridos e descolados, que duas sociedades se cruzam e se atravessam.
Não necessariamente o moderno e o arcaico, ou o provinciano e o cosmopolita. Essas fronteiras, precárias por demais, não servem ao jogo estabelecido por Kleber Mendonça Filho - Bacurau faz questão de escapar a esse esquematismo. Pelo contrário, ele suspende o tempo (o filme se passa num futuro indeterminado) e torna cinzenta essas margens, colocando em contato duas formas absolutamente incompatíveis de sociabilidade que se contrapõem não no plano cronológico, mas num plano ético e político.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Caravelas

Quando desci das caravelas, trouxe, na saliva bafienta, reza e vírus. Matei milhões, madruguei o holocausto tropical. No espelhinho ofertado ao pajé, apresentei-lhe em gotículas, o hálito azedo de minha genealogia assassina. Do alto dos meus, trapos e farrapos, anunciei-me dono da terra, dos rios, das serras e das estrelas, dos corpos. O mar bafejava o que era fora; o sangue marcava o que era dentro; e era meu. Trouxe a boa nova do ódio e da assombração, em nome do pai e da pátria. Perverti as guerras e coloquei cordão de isolamento no carnaval da mata. Outras métricas e rimas. Enjaulei onças, papagaios e despudores. E depois embarquei de novo. Partida e chegada. Fui exibir, nos salões fedorentos do reino de Portugal, aos nobres com pulseirinhas VIP que saiam nas colunas sociais, bons burgueses, essa exótica mercadoria: o esplendor da vida.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O último dia do Brasil

Quadro de Roberto Chichorro: a memória de um país
alegre e acolhedor se encerra hoje. 

31 de dezembro de 2018. Hoje é o último dia do Brasil. Nossa história e nossa memória como (projeto de) país acabam aqui. O que virá pela frente é simulacro e ruína. A partir de amanhã, nossos sonhos de uma nação fraterna, alegre, acolhedora e democrática despertam para a pior realidade possível. Silêncio, força e esquecimento. Não haverá mais civilidade nem racionalidade sobre as quais seja possível erguer qualquer coisa. Criança, não verás país algum. Os boçais e os banais venceram. E nos matarão - cultural, política e fisicamente.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Os meritocratas contra o mérito

"O ignorante olhar", da portuguesa Maria Andresen:
a ignorância que há em mim não respeita
o conhecimento que há em você

O avanço da extrema direita em vários locais do mundo, processo que, no Brasil, é representado pela chegada assustadora do precário Bolsonaro ao poder, tem como um de seus principais motores as estratégias de manipulação e contaminação das mídias sociais. Extremamente poderosas e articuladas, elas pautam o cotidiano dos incautos com seus conteúdos atravessados por clichês, ódios e banalidades. Sempre mobilizando seus afetos contra os "inimigos" de plantão e reduzindo discussões complexas às soluções "lacradoras" de memes e postagens compartilhados alucinadamente em grupos de família, amigos e trabalho.

domingo, 2 de setembro de 2018

Terceirização: adeus ao valor social do trabalho

Com decisão do STF, empresas passam a ser
meras gestoras do lucro (mais até do que da produção)
Os efeitos da terceirização ampla geral e irrestrita - aprovada a toque de caixa pelo STF após o regalo dos tais 16% - serão assustadores sobre o mundo do trabalho no Brasil. Não apenas na concretude da nova legislação que se impõe a partir de agora (precarização, insegurança, etc), mas por uma violenta mudança de paradigma: o lucro passa a ter uma despudorada e irresponsável prioridade sobre o valor social do trabalho em nossa sociedade. 
Não há capitalismo bom, é fato. A desigualdade e exploração estão na base do sistema econômico. Entretanto, sociedades avançadas e desenvolvidas conseguiram conciliar a sanha pelo lucro com robustos sistemas de amparo social e redistribuição de renda, oferecendo níveis razoáveis de qualidade de vida às suas populações. Com a terceirização adotada no Brasil, as empresas, a partir de agora, serão apenas unidades gestoras do lucro (mais até do que da produção), escapando ao horizonte da prática empresarial, de uma vez por todas, quaisquer laços sociais ou valores de outra natureza que não seja o dos proventos financeiros. 
Esse cenário vai adoecer ainda mais profundamente uma sociedade já tão desigual quanto a brasileira. A decisão do STF, mais do que apreciar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e o Recurso Extraordinário (RE) 958252, afirma em alto e bom som: o único regulador para qualquer projeto de sociedade que se queira no País será única e exclusivamente o lucro. 
Por ora, a terceirização das chamadas "atividades-fim" não atinge o serviço público. Mas, em breve, isso será pautado pelos donos do lucro no País, que também continuarão avançando sobre todos os demais fundamentos de proteção coletiva previstos na CF. O futuro nunca nos foi tão sombrio...

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Assistência social: Fortaleza é a segunda capital que menos investe em crianças e adolescentes

Meninos em situação de rua em Fortaleza:
orçamento público é o coração das nossas trevas

A denúncia do Centro de Defesa da Criança e do Adolescentes (Cedeca) é gravíssima. Fortaleza é a segunda capital do Nordeste que menos destinou investimentos para a assistência social de crianças e adolescentes em 2017. Salvador, no topo do ranking, executou R$37,54 per capita no mesmo período. A capital cearense destinou ínfimos R$1,60 para cada criança e adolescente. São aproximadamente 628 mil pessoas (até 17 anos), em que mal se investiu R$1 milhão em políticas de assistência social ao longo de todo o ano. Nessa seara, só não estamos pior do que Teresina.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A "praga" de farmácias e a cidade adoecida

Pintura de Ernest Descals: o novo não-lugar preferido dos fortalezenses

Em Fortaleza, noves fora as vendas de açaí, as farmácias são o principal denominador comum de uma paisagem urbana entristecida, suja, adoecida. Esquina sim, esquina não, pululam numa assepsia obtusa centenas de unidades farmacêuticas em meio às nossas patogenias citadinas. 


domingo, 22 de julho de 2018

Pesquisadores denunciam "catástrofe" na saúde com Temer

Sucateamento do SUS e privatização estão no centro da
"catástrofe" brasileira, denuncia estudo
Em artigo publicado na revista The Lancet, pesquisadores das universidades de Cambridge, Massachusetts e Brasília classificam como "catástrofica" a política de Temer para a área de saúde. Segundo a publicação, a combinação entre austeridade econômica, desregulamentação e privatização dos serviços públicos, marca das ações do governo neoliberal de Temer, estão trazendo inúmeros prejuízos para a população: do aumento da desigualdade à disparada da violência.

"O governo brasileiro está retrocedendo em relação à universalização dos serviços de saúde, mesmo isso sendo um direito constitucional", diz o texto. "As políticas neoliberais na área de saúde, combinadas com a desregulamentação das leis trabalhistas e a severa crise econômica, estão não apenas trabalhando contra a ideia de justiça social, mas também exacerbando as duas principais preocupações na área de saúde pública: a desigualdade socioeconômica e socioespacial e as altas taxas de homicídio".

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Rimbaud canta o Brasil



Em "Paris Repovoada", poema escrito logo após a Comuna de 1871, Rimbaud descreve o restabelecimento da vida burguesa parisiense após os 70 dias de uma "república proletária" na França, dizimada num dos maiores massacres da história.

Por aqui, o ciclo do PT no governo central esteve longe de nos tornar um imenso Quartier Latin dos tempos dos communards. Foi, a rigor, um governo majoritariamente liberal na economia (com pontuais mas decisivas intervenções do estado) e, com alguma boa vontade, de centro-esquerda na ideologia. Entretanto, demarcou um breve mas importante ciclo progressista e de conquistas de direitos que, apesar de inferior às promessas e expectativas de justiça social que trazia em suas bandeiras pré-2002, foi o suficiente para levar à histeria as pesadas estruturas conservadoras e reacionárias do País.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Se é pecado driblar...



A genialidade de Garrincha consistia no seu anti-drible. Em vez do movimento surpresa, da rota improvável, ele fazia-se herói da previsibilidade. Todos no estádio, a começar por seu marcador, sabiam que aquele cambota arredio, no momento crucial, iria dar o bote decisivo e inapelável: sempre pela direita. Todos estavam cientes que Garrincha, inexorável, iria passar pelo adversário e por quem mais lhe descombinasse o jogo. Sempre pela direita. Nenhuma surpresa no lance, mas nele cabia toda a beleza do mundo.

O camisa 7 imortal do Botafogo era assim. Fazia, com uma pureza diáfana, quase infantil, quase de não saber enganar o próximo, o que o futebol de hoje, entretanto, traz como seu grande vício, seu insuportável embaço. O ludopédio hoje não engana mais ninguém. Vivemos a era do anti-drible programático, da previsibilidade de gestos. Mas tudo como fraude, como a farsa de uma história que se repete.