"O ignorante olhar", da portuguesa Maria Andresen: a ignorância que há em mim não respeita o conhecimento que há em você |
O avanço da extrema direita em vários locais do mundo, processo que, no Brasil, é representado pela chegada assustadora do precário Bolsonaro ao poder, tem como um de seus principais motores as estratégias de manipulação e contaminação das mídias sociais. Extremamente poderosas e articuladas, elas pautam o cotidiano dos incautos com seus conteúdos atravessados por clichês, ódios e banalidades. Sempre mobilizando seus afetos contra os "inimigos" de plantão e reduzindo discussões complexas às soluções "lacradoras" de memes e postagens compartilhados alucinadamente em grupos de família, amigos e trabalho.
Uma pauta recorrente nesse imenso deserto da razão é a defesa arraigada da, assim chamada, "meritocracia". Contra a suposta ineficiência estatal, é erguida a marca privada do estudo, da eficácia, do trabalho, do método. O "mérito" seria assim o contraponto imaginário àquilo que o estado negaria. É esse "mérito" que me permitiria chegar às minhas vitórias pessoais, pensam os tais meritocratas, as quais não precisaria dividir com aqueles empoderados pelos mecanismos estatais corruptos e letárgicos.
Trata-se, obviamente, de uma barafunda que confunde e distorce conceitos. E esconde uma hipocrisia fundadora da nossa relação com a própria noção de estado, sempre marcada por um patrimonialismo que não nos permitiu um chão sólido para qualquer projeto republicano. Até a chegada do PT ao poder, o estado era o refúgio preferido das velhas oligarquias que se apropriavam do orçamento público de forma indiscriminada. A pequena, mas relevante, redefinição da destinação de recursos públicos feita pelos governos petistas, que passaram a considerar de alguma forma os fins que efetivamente atendiam a maioria da sociedade, tornou um tanto desconfortável a relação dessas oligarquias com o estado.
Ainda que timidamente, o estado começou a fugir das garras dos velhos grupos econômicos e começou a esboçar a promoção de mais proteção social, de melhores serviços públicos e de isonomia de tratamento para um conjunto mais amplo da sociedade. De animal domesticado e sempre submisso aos interesses dos velhos oligarcas, o leviatã passou a ser visto como "inimigo" dessas velhas estruturas de poder (ainda que as beneficiasse de forma substancial dentro da lógica de conciliação promovida por Lula e Dilma). E esses grupos passaram a responder com diversas estratégias de deslegitimação da noção de estado como regulador do interesse público. Uma dessas ferramentas foi justamente o discurso apressado da "meritocracia".
A radicalização desse discurso levou à radicalização da própria superficialidade que lhe sustentava. E isso acabou por gerar imensas contradições no plano da opinião pública. A solidez da meritocracia desmanchou no ar. Os motivos são vários. Mas há, entre eles, uma questão central: o anti-intelectualismo que pauta o espírito dos que chegam ao poder no coche da extrema direita opera contra a noção de esforço - de estudo, de domínio técnico, de destreza instrumental - que estaria no cerne do imaginário de meritocracia.
Não adiantam o rigor, as estatísticas, a série histórica de dados e a diversidade de estudos científicos que atestam o aquecimento global. O meritocrata típico vai preferir os memes dos negacionistas que lhe consolam com as "denúncias" contra o tal "marxismo cultural", que, segundo eles, vem criando essa fantasia sobre as mudanças da temperatura na Terra. O próximo ministro das Relações Exteriores, por exemplo, alçado ao cargo mesmo sem nunca ter chefiado uma missão diplomática ou embaixada fora do Brasil, chegou a afirmar que a causa ambiental foi criada por "escritores românticos" e que o "climatismo" é uma perversão da esquerda.
Não adiantam também as pesquisas e os cálculos de economistas - nem mesmo a realidade próspera de países que decidiram não seguir a cartilha de austeridade neoliberal, a exemplo de Portugal, Uruguai, Canadá e outros; tampouco a tragédia dos que sucumbiram à agenda pesada das diversas "troikas" mundo afora, a exemplo da própria Grécia, além de Argentina, Itália, etc. O meritocrata vai sempre sempre abraçar os cards que denunciam a permanente tentativa de golpe "comunista" para passar pano para os interesses de bancos e grandes corporações financeiras.
Não adianta a complexidade e a virtuose técnica de uma experiência artística, o meritocrata sabe que o seu "gosto" é sempre superior; tudo o mais são deformações e exageros de artistas pervertidos e imorais. A fogueira inquisitória do meritocrata típico está sempre acesa para fazer arder aquilo que na arte desestabilize seu cânone. E assim segue a vida, entre truísmos e futilidades as mais diversas, todas típicas de regimes fascistas. A ignorância que há em mim não respeita o conhecimento e a informação que há em você.
As vitórias da extrema direita são também resultado desse subterrâneo das mídias sociais, que está empoderando os desinformados, os leigos e os incautos numa violenta cruzada contra o estudo, a pesquisa e a crítica. Nada mais contraditório, portanto, ao discurso do mérito, que essa mesma direita usa para desconstruir e vilanizar a noção de estado - ao mesmo tempo em que tenta colocar a coleira nele para se reapropriar do orçamento público.
Não há "mérito" possível sem a centralidade da razão, coisa cada vez mais rara nesses tempos de cegueira moral e intelectual.
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