A vidraça e a violência: a palavra perdida volta como bala perdida |
O psicanalista e professor da USP Christian Dunker escreveu esta semana, no blog da editora Boitempo, uma brilhante resposta a Rodrigo Constantino, colunista da revista Veja. Sua tréplica é, provavelmente, o texto mais produtivo aos que quiserem compreender a quantas anda e qual a lógica do debate público no Brasil. Em especial, num momento em que a direita e o pensamento conservador tentam rebaixar as pautas e as perspectivas dos debates, numa desonesta inversão de argumentos. E também numa perigosa direção de intolerância e violência.
Lembrei de Nietzsche e de seu alerta segundo o qual, ao se combater "monstros", há que se cuidar, aquele que combate, para não acabar se tornando um "monstro" ele próprio. "Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você", diz o filósofo alemão. Hoje, o que temos no Brasil, é o abismo do ódio, da ignorância e da intolerância a espreitar de muito perto os que se propõem a pensar o País para além de meia dúzia de chavões preconceituosos e frases feitas. E aí nos vem a fadiga, o fastio. A sensação de que não vale a pena. De que temos de começar tudo do zero para dar conta do ponto sumário em que certos debatedores querem manter o diálogo.
Entretanto, como bem lembra Dunker, "não se envolver em brigas com alguém que não seja de seu tamanho, manter a política da 'caravana passa enquanto os cães ladram' é uma atitude salubre. Contudo, manter-se na zona de conforto seria um ideal simples e razoável, não fosse o fato de que o equívoco, sendo a essência da comunicação, torna a nossa zona de conforto uma zona de confronto".
Para o psicanalista, citando Lacan, a palavra perdida, na comunicação com o outro, volta como uma bala perdida. "E dela temos que nos proteger, com novos muros, objetivos e subjetivos. Quanto mais recusamos a reconhecer nossa palavra simbolicamente perdida, mais ela tende a voltar como bala no Real".
Eis a origem, por exemplo, do surrado argumento que questiona a legitimidade da tal "esquerda caviar" em poder consumir bens que, na cabeça empoeirada dos Constantinos da vida, seriam exclusivos dos que têm o poder econômico. Explica Dunker: "o que vemos aqui é a transformação das diferenças sociais, da existência de pobres e ricos, da distribuição não equitativa de bens materiais e simbólicos, em um ressentimento de classe. Por isso os que estão na esquerda caviar são traidores, hipócritas e impostores. Eles não jogam no time dos ricos contra o time dos pobres. Pela regra do jogo, os que perderam direito a palavra só podem se vingar por meio da bala".
Por isso, ironiza o professor, a coisa mais “lógica” a fazer é retirar-se para o condomínio, de preferência em Miami, e viver uma vida de refugiado sobrevivente. A questão é que os tais sobreviventes se refugiaram em bolhas ideológicas dentro das quais não se escuta mais do que uma tautologia irrisória, alienada e preconceituosa. A distância entre esse simulacro de debate público e a violência é apenas a de uma vidraça quebrada.
P.S. - Abaixo, uma palestra de Dunker sobre a vida entre muros, tão característica de nosso tempo e lugar.
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