Richard Sennett: a cidade como instrumento da vida impessoal |
Quando as estatísticas sociais e econômicas começaram a reverberar a emergência de uma nova classe média ao longo dos governos petistas, resultado da superação de parte importante da pobreza e da extrema pobreza no Brasil, que se mostravam crônicas e inexoráveis durante o horror econômico do governo FHC, muitos analistas alertaram para a emergência simultânea de um modelo de cidadania baseado majoritariamente no consumo. Essa cidadania estava fundada não na afirmação e consolidação de direitos, nem numa transformação estrutural mais profunda do País. Baseava-se apenas na inclusão social, pelo consumo, de milhões de brasileiros.
Isso fez com que os "cidadãos-consumidores", para usar a expressão de Canclini, de todas as classes sociais, desenvolvessem uma visão invertida sobre a política. Em vez de nos estimular a pensar e a se sensibilizar com os dramas nacionais em toda a sua complexidade, forçou, pelo contrário, o pensamento sobre os grandes problemas do País a convergir e a se adaptar aos limites de demandas individuais e estreitas da vida cotidiana. À sensibilidade pública, ao sentimento de construção coletiva de um país, o brasileiro vem exercendo uma retribalização atomizada, vem celebrando a lógica privada, que tenta "resolver" os problemas da esfera pública apenas no âmbito dos interesses e dos contratempos particulares.
Não é um debate novo. Talvez seja novo no Brasil, um país de democracia muito jovem, que não experimentou os ciclos de desenvolvimento econômico do Ocidente industrial e que, até a chegada de Lula à presidência, estava condenado a conviver com estruturas orgânicas de reprodução social da pobreza e da miséria. Nos anos 70, Richard Sennett, por exemplo, em seu brilhante O declínio do homem público, já tratava do tema do empobrecimento da vida civil na sociedade ocidental. "O bairrismo e a autonomia local estão se tornando credos políticos de amplo espectro, como se as experiências das relações de poder tivessem mais sentido humano quanto mais intimista for a escala (...) A comunidade se torna uma arma contra a sociedade, cujo maior defeito é tido como sendo sua impessoalidade", escreve Sennett.
Desse estreitamento da política, desse empobrecimento da vida civil, resulta uma espécie de ditadura da intimidade, de tirania da "comunidade". Uma crença nas relações humanas em escala intimista que seduz e perverte a compreensão das realidades de poder e o comportamento político do homem. "O resultado disso é que as forças de dominação ou a iniquidade permanecem inatacadas", alerta o sociólogo. No âmbito urbano, as consequências são profundas. "A cidade é o instrumento da vida impessoal, o molde em que diversidade e complexidade de pessoas, interesses e gostos se tornam disponíveis enquanto experiência social. O medo da impessoalidade está quebrando esse molde", explica Sennett.
Disso, bem sabe a cidade de Fortaleza, surgem, por exemplo, os viadutos e outras intervenções extemporâneas no espaço público como solução para os "meus" contratempos de deslocamento, para o "meu" carro particular, para as 'minhas' aspirações particulares na cidade; e não para os problemas de mobilidade dos outros, onde "eu" também me incluo, mas onde cada vez menos me reconheço. Na prática, não adianta tentar discutir que esse tipo de obra constitui apenas um paliativo, um "analgésico" para uma doença que é de outra natureza. Não adianta mostrar que um viaduto degrada o seu entorno do ponto de vista urbanístico e compromete o futuro das cidades em relação à fruição do espaço urbano. Tampouco interessa saber que a maioria das cidades e países que estão encontrando soluções eficazes de mobilidade para o conjunto global de sua população estão destruindo viadutos. A elite e a nova classe média, com seus cidadãos-consumidores, não querem saber de direitos urbanos, não querem "perder" tempo discutindo soluções de longo prazo. Não querem, enfim, tratar de política, mas de um simulacro onde os propósitos de uma cidade são distorcidos e o interesse particular, pessoal, vai legislar sobre o destino público.
Outro exemplo é a discussão sobre a redução da maioridade penal. Para esse pensamento político estreitado, que reflete uma visão de mundo cada vez mais isolada e delimitada pelos condomínios privados e pela pauta do mundo do consumo, colocar garotos de 16 e 17 anos na prisão comum é a grande panaceia da vez. E não adianta esgrimir estatísticas mostrando que o percentual de jovens infratores é ínfimo, que o percentual de reincidência no mundo do crime é consideravelmente menor do que aquele observado nas penitenciárias de adultos, que os jovens (sobretudo, os negros e favelados) é que são as principais vítimas. Não interessa. Nada é mais sedutor e arrebatador do que um menor infrator sendo exibido como troféu num programa policial ou num vídeo anônimo da internet. E assim, entre o discurso fanfarrão e a propaganda fascista, os "cidadãos-consumidores" vão, alardeando aos quatro cantos um auto-engano revanchista e mitificador, tentando não resolver o problema da injustiça social mas apenas livrar ou garantir as rotas e as conveniências de sua intimidade.
A política, exercida na plenitude de sua impessoalidade, pode transformar um país. A alienação e o individualismo construirão, certamente, uma tragédia.
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